Lá se vão três anos desde que deixei de ser vegana. Lembro que mudei de ideia quando comecei a sonhar que estava comendo queijo quente mergulhado no molho de tomate, e minha psicanalista, que me acompanha há quase uma década, me alertou dizendo que o desejo sempre desemboca em outros lugares e por isso eu deveria prestar atenção nele.
Depois de muitas sessões, fui voltando aos poucos a comer laticínios e, na época, compartilhei essa mudança com as pessoas que me acompanham pelas redes, já que meu trabalho como cozinheira e comunicadora esbarra na minha vida cotidiana, apesar de não ser sobre mim. Tive medo de ser cancelada (ser contraditória dói, em público, então!), mas estudando sobre o que significam os desejos no campo psicanalítico, literário e sexual, a culpa aos poucos foi sumindo.
Dizem que a gente muda de casca a cada sete anos — e tem um quê de verdade nisso. Como fermentadora, pensar no corpo como esse ecossistema em constante renovação, com trilhões de microrganismos trabalhando em silêncio, me faz olhar pra mim com mais curiosidade do que controle.
Mas nem sempre foi assim: lembro quando escutei a Sonia Hirsch, uma das minhas primeiras referências na cozinha quanto à alimentação sem carne, contar que num Natal, inesperadamente voltou a comer porco. Não me lembro bem se foi numa entrevista ou num dos livros dela. Disse que aconteceu de uma hora para outra, quando viu o prato suculento que um parente tinha feito. Fiquei fascinada com aquilo, pensando como poderia alguém mudar de opinião tão bruscamente depois de passar décadas sem comer animais, e mal sabia que também aconteceria comigo.
Já são muitos anos estudando a cozinha vegetal. Quando mergulhei a fundo no veganismo, aboli os vinhos clarificados com escamas de peixe, deixei de comprar objetos feitos com couro, cumpri todo o protocolo de não exploração de pessoas e animais, procurava estar cada vez mais alinhada com a luta, dentro das minhas possibilidades. Entendi a importância do antiespecismo como movimento global, li vários livros e estudos científicos que trazem o vegetarianismo como solução de único futuro possível.
Nunca fui uma ativista que posta fotografias de bichos maltratados ou mortos em condições cruéis pela indústria, sempre preferi caminhar através da criação do desejo pelos vegetais, pois a versatilidade deles realmente me fascina. Acredito muito mais na provocação de uma vontade do que na proibição. Tanto que muitas pessoas desavisadas nem imaginam que a grande maioria das minhas receitas é totalmente vegetal.
Esse ano, meu nutricionista percebeu pelas minhas falas e exames que eu estava de novo entrando num quadro de compulsão alimentar ao desejar comer algo “proibido” e seguir me privando. Contei pra ele que meus sonhos alimentares começaram a aparecer de novo: num deles eu estava comendo leitoa pururuca, que meu pai fazia na infância, e no outro, uma carne de panela. Confessei o desejo, ele riu, me mandou umas referências e me lembrou que o ato de se alimentar é social e que temos que repensar o consumo numa esfera pública, muito maior.
Isso faz muito sentido para mim agora, ainda que o desejo se manifeste como uma incompatibilidade visceral. Custei a aceitar. Este ano, minha mãe, que também é uma das minhas melhores amigas, me presenteou com uma empadinha de frango com queijo. Delirei: a gente sempre pedia esse recheio durante toda uma vida, fosse na pizza, nas empadas ou nos pastéis de feira.
No dia do aniversário dela, ela quis comer um bacalhau num restaurante especializado e fui junto. A dona me reconheceu, disse que acompanhava meu trabalho, perguntou educadamente se eu gostaria de alguma opção vegetariana com batatas. E eu respondi que não, que tinha mesmo pedido o bacalhau, que estava fazendo as pazes com abrir exceções. Depois passei semanas remoendo a situação, me perguntando se antes de eu mesma entender o que estava acontecendo com meu corpo e meus desejos, eu precisava comunicar isso para as pessoas, dar satisfação do que coloco no meu prato. Eu ainda não sabia se estava satisfazendo um desejo transitório ou se minha vida como ovolactovegetariana e pesquisadora da cozinha vegetal tinha ido por água abaixo (um drama danado, vejo agora!).
Uma amiga me lembrou que o Yotam Ottolenghi, cozinheiro e comunicador, uma das maiores referências globais da cozinha vegetal, diz que acredita numa alimentação que valoriza os vegetais pelas técnicas, pelo que são, mas que ele mesmo come carne e escreve receitas com carne. Ele conta, na introdução do seu livro Sabor: “minha abordagem pessoal sobre vegetais sempre foi pragmática e inclusiva. Se você quer trazer mais pessoas para o universo vegetariano, não há pior forma de fazer isso do que exigir que elas entrem de cabeça”.
Meu interesse pela cozinha vegetal continua o mesmo – forte, curioso e apaixonado. E quero que haja fluidez para que eu continue descobrindo nove mil jeitos de lidar com cogumelos e infinitas formas de servir cenouras, e que o tucupi manso, feito a partir da mandioca, é uma técnica indígena brasileira muito mais elaborada e pouco discutida do que muitos molhos franceses tão comuns nos cursos de gastronomia.
Ainda há muito o que se fazer para tornar os pratos vegetais mais presentes nos menus e nas nossas mesas cotidianas. Lembro bem quando, num podcast que participei como convidada, eu ri quando a apresentadora perguntou o que eu achava da dieta flexitariana, realmente acreditava que o veganismo caberia para sempre na minha vida. Anos depois, entendi/entendo que o flexitarianismo (ainda estou fazendo as pazes com essa palavra) faz sentido para mim: poder comer a “porca lambuzada” que minha amiga cozinheira faz no dia do aniversário dos nossos amigos, ao invés de recusar o desejo que agora apareceu e compensar da maneira que eu conheço, que é comer doces desesperadamente, está sendo libertador.
Sei que muita gente vai torcer o nariz e eu entendo. Nessas horas, lembrarei que a Mari Sciotti, dona de um dos restaurantes vegetarianos que mais gosto, não é vegetariana, e mesmo assim contribui, através das suas redes, ensinando técnicas sobre cozinha vegetal que são um deleite. E também que há alguns anos li uma entrevista com a Bela Gil, onde ela dizia que se considera uma vegetariana que come carne de vez em quando. Achei incrível como essas duas chefs de cozinha criaram um espaço para seguir chamando atenção para os vegetais. O posicionamento delas agora faz total sentido para mim!
Tenho feito essa conta: se consumo, em média, quatro refeições por dia, isso dá 1.344 refeições por ano, então na grande maioria das vezes eu escolho os vegetais, salivo por eles. E se em algumas refeições não for um prato vegetal, tudo bem também.
É óbvio que continua importante fazer o quanto for possível pela causa animal e ambiental e também usar os meus privilégios para consumir alimentos que sei de onde estão vindo, valorizando assim os produtores. Isso também não muda pra mim: vou seguir trazendo esses temas para a gente pautar juntos, aqui e em outras redes!
Acho que, em todos os aspectos, não só alimentares, precisamos repensar o quanto cobramos dos nossos. Talvez seja hora de reposicionar a luta: afinal, ela é contra a indústria ou contra o indivíduo? Ninguém é impecável. E absolutamente ninguém peca por lutar como pode. Não me considero uma soldada desertora da luta vegana, como muitos vão continuar dizendo que sou. É um fato que precisamos, coletivamente, comer menos carne. Minha esperança é que a gente caminhe para uma sociedade livre de exploração animal e pessoas — mas que isso vá além, pelo caminho da criação do desejo!
Então, se me verem na rua comendo um torresmo, me ofereçam um limãozinho!
A Bela Righi fez a nova arte que vai para a capa desta newsletter, e eu pude remunerar o trabalho dela graças à leitura de vocês :)
Amiga eu passei por esse mesmo processo e tá sendo uma redescoberta comer carne às vezes. Muito bom se permitir. Obrigada pelo texto ❤️
Muito legal você compartilhar sua jornada, Carol! Somos seres desejastes, cheios de camadas e, além disso, a gente vai mudando ao longo da vida - e que alívio a gente se permitir mudar. Sigo acreditando que a liberdade para poder sermos nós mesmos é das coisas mais importantes e desafiadoras. Ser quem somos e seguir o sendo ao passo que mudamos são dois exercícios que precisamos praticar cotidianamente.